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Cruzada contra fungos

domingo, 27 de maio de 2012

Belo Horizonte — Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) avançam em uma cruzada contra os fungos causadores de doenças em humanos. Cerca de 200 moléculas de função medicinal foram sintetizadas, testadas in vitro — dentro de recipientes, no ambiente controlado e fechado dos laboratórios — e começam a ser experimentadas em animais. Os compostos têm se mostrado menos tóxicos ao paciente e de fabricação mais simples e barata, em comparação com os remédios disponíveis no mercado.

As pesquisas são realizadas por duas equipes da UFMG e envolvem professores e alunos do Grupo de Estudos em Química Orgânica e Biológica do Departamento de Química do Instituto de Ciências Exatas (Icex) e do Laboratório de Micologia do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB). Uma das equipes é coordenada por Claudio Donnici e a outra, por Ângelo de Fátima, ambos docentes do Departamento de Química.
Depois dos testes in vitro em mais de 20 espécies de fungo, as moléculas mais eficientes seguiram para a etapa seguinte, a experimentação em camundongos, e estão a caminho de ser patenteadas. A equipe do professor Donnici pediu a patente de quatro compostos, já testados contra quatro espécies do gênero Candida, causadores da candidíase, responsável por infecções na boca (o popular sapinho), em torno dos olhos, na virilha, em volta do ânus, no pênis e na vagina. Nos casos mais graves, a doença pode ser fatal e afetar órgãos como pulmões, rins, fígado, coração e cérebro.

Um dos compostos inibiu as espécies Candida albicans e Candida glabrata na concentração de 0,49 micrograma (0,00000049g) por milímetro, valor menor que o obtido por um fármaco disponível no mercado, o fluconazol (0,00000195g), e próximo ao de outro fármaco, a anfotericina B, descoberto na década de 1950 e até hoje o mais usado no tratamento das micoses (0,00000032g).

Os compostos sintetizados pela equipe de Donnici se mostraram pouco tóxicos, em comparação com a anfotericina B, cujos efeitos colaterais podem causar febre, vômito, dores de cabeça e até insuficiência renal. “Além disso, esse medicamento é sintetizado em várias etapas, enquanto nossos compostos só exigem duas fases, sendo mais simples”, revela o coordenador da pesquisa. Portanto, os remédios feitos a partir desses compostos custariam menos ao consumidor.

A equipe coordenada pelo professor Ângelo de Fátima pediu a patente do uso antifúngico de quatro moléculas derivadas das aldiminas, formadas com base em átomos de carbono, hidrogênio e nitrogênio. Um dos compostos se mostrou duas vezes mais ativo que o fluconazol no tratamento da espécie Cryptococcus neoformans, causador da criptocose e responsável por por mais de 90% das infecções nos pacientes com Aids no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. A doença se caracteriza por lesões na pele, ulcerações e massas subcutâneas que simulam tumores. Em sua forma mais grave, pode aparecer como meningite crônica, que pode ser mortal se não tratada a tempo. O mesmo composto foi eficaz contra outras duas espécies, Candida glabrata e Cryptococcus gatti.

Além disso, a síntese dessas moléculas é feita em uma única etapa, em uma reação que dura apenas dois minutos, e com rendimento de 70% a 98%, o que torna sua produção em larga escala mais rápida, simples e barata, em comparação à síntese de fármacos comerciais. A do fluconazol, por exemplo, apresenta rendimento de 3%, ocorre em pelo menos quatro etapas e exige o uso de reagentes caros, altamente tóxicos e de difícil manipulação, como o cloreto de alumínio. “Como têm um rendimento maior e, portanto, menos perdas em sua produção, nossas moléculas geram um produto final mais barato”, aponta De Fátima.

As moléculas desenvolvidas pelas duas equipes da UFMG apresentam outra virtude: são mais seletivas que fármacos comerciais em relação aos alvos que desejam abater e, portanto, provocam menos efeitos colaterais. Por enquanto, para não prejudicar os pedidos de patente, os pesquisadores evitam revelar detalhes dos resultados dos testes em camundongos. “Só o que posso falar é que os compostos estão tendo resultados promissores contra fungos causadores de micoses cutâneas. Se você divulgar os resultados antes, o registro de patente não é aceito”, afirma Maria Aparecida Stoianoff, coordenadora do Laboratório de Micologia da UFMG e colaboradora das duas equipes de pesquisa.

Ainda não há data para os compostos serem testados em humanos. “Esses testes ocorrerão daqui a pelo menos dois anos”, prevê Stoianoff. O objetivo é que as moléculas efetivas componham — isoladas, combinadas entre si ou com fármacos já existentes — um ou mais medicamentos, a serem distribuídos no mercado. “Ainda não dá para saber se seriam comprimidos, pomadas, xaropes; se atacariam doenças de pele ou fungos danosos ao coração, ao pulmão. Há muito a ser definido”, pontua o professor De Fátima.

As pesquisas são financiadas por órgãos como a Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais (Fapemig), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E não têm prazo para ser concluídas. “As moléculas mais promissoras, que estão sendo testadas em animais, já nos deram muita informação. Agora, estamos tentando melhorar esses protótipos, construindo novas moléculas baseadas neles. É um ciclo que se autoalimenta”, observa Ângelo de Fátima.

Ainda negligenciadas
Até a década de 1980, as grandes corporações da indústria farmacêutica pouco se interessavam em pesquisar novas drogas para o tratamento de micoses, consideradas doenças de países do Terceiro Mundo, onde os potenciais clientes têm menor poder aquisitivo. Depois, com o surgimento da Aids e o boom dos transplantes de órgãos, o número de pacientes imunodeprimidos (sob o efeito de medicamentos que enfraquecem a resistência natural do organismo) aumentou, tanto em países pobres quanto nos mais desenvolvidos. Essa população abriu as portas a micro-organismos oportunistas, entre eles os fungos, que geralmente vivem como hospedeiros inócuos, mas que aproveitam a guarda baixa e se tornam parasitas.

Apesar de doenças fúngicas terem se propagado para nações ricas, ainda hoje algumas são negligenciadas pela indústria, o que deixa pacientes à mercê de tratamentos inadequados ou inexistentes. Uma delas é a quase impronunciável paracoccidioidomicose (PCM), que não tem cura e só ocorre na América Latina. Causada pelo fungo Paracoccidioides brasiliensis, a doença, diagnosticada sobretudo em lavradores, tem no Brasil o maior número de casos relatados em todo o mundo. “Os fármacos antifúngicos presentes no mercado têm, em geral, diversas limitações. Entre elas, os mecanismos de resistência desenvolvidos pelos fungos, principalmente em indivíduos imunodeprimidos de alto risco, como os portadores do HIV. É necessário buscar novas drogas antifúngicas”, avalia Maria Aparecida Stoianoff.
 
Conheça alguns males 

Candidíase
Fungos causadores: 
espécies do gênero Candida

» É transmitida por meio de contato com mucosas e secreções em pele de portadores ou doentes. Atinge a superfície cutânea e/ou membranas mucosas, podendo ser oral e vaginal, entre outras manifestações. A forma mais comum de candidíase é caracterizada pelas aftas, mas a doença também pode atingir qualquer órgão e causar a morte do doente.

Criptococose
Fungo causador: 
Cryptococcus neoformans

» É transmitida por inalação de partículas dispersas na natureza e frequentemente encontradas em excrementos de aves, sobretudo pombos. Não há transmissão homem a homem. Caracteriza-se por lesões ou massas subcutâneas que simulam tumores. A forma mais grave aparece como meningite, caracterizada por febre, fraqueza, náusea, confusão mental, entre outros sintomas. Em sua forma mais grave, há comprometimento ocular, pulmonar, ósseo e, às vezes, da próstata. Pode causar a morte do paciente.

Paracoccidioidomicose
Fungo causador: 
Paracoccidioides brasiliensis

» Em geral, é transmitida por inalação de partículas infectantes dispersas na natureza, sobretudo no solo. Não há caso descrito de transmissão pessoa a pessoa. Pode causar lesões na pele e nas mucosas (oral, nasal e gastrointestinal), comprometer ossos e articulações, acometer órgãos vitais e causar a morte do paciente.